Era um domingo de manhã quando a conheci. Não me esqueceria desse momento nem que se passassem mil vidas. Ela estava na porta do carro, calça jeans, blusa azul de alças que deixariam os ombros à mostra, não fosse o xale branco que usava. O xale escondia os ombros. O decote era bastante visível. Estava acendendo um cigarro e me chamou quando passei. Não sei se ela notou, mas meu rosto queimava nesse momento. E queimava mais, quanto mais me aproximava dela. Me fez algumas perguntas meio sem importância e, quando o cigarro acabou, perguntou se os coroinhas não tinham a obrigação cristã de ajudar as pessoas que deles precisassem. Não sabia muito bem o que ela queria dizer, mas não sentia vontade de negar nada. Eu tinha quinze anos. Jamais negaria qualquer coisa para aquela mulher naquele momento.
Entrou no carro e me chamou para entrar no outro lado. Queria que eu a ajudasse com algo pesado que não podia carregar em casa. E eu fui. Pensando bem, se houve um momento em que seria possível negar algo para Sylvia, havia acabado de passar. Entrei no carro. Como você chama?, perguntou. Pedro, eu disse. Nome bonito, Pedro. Quem escolheu? Não sei. Minha mãe queria colocar Gabriel, meu pai, Joaquim. Acabou ficando Pedro. Joaquim ou Gabriel e lhe sobrou Pedro, hein? Quer saber, você saiu em vantagem. Pedro é o melhor dos três. Por que seu pai queria colocar Joaquim? Era o nome do pai de Nossa Senhora. A sua família é toda religiosa? Meu pai foi padre. Adoeceu e preferiu deixar a igreja para se tratar. Conheceu a minha mãe e eles se casaram. E ele ficou bom? Ficou sim. História bonita. E bem ensaiada. Quantas vezes você já teve que contá-la? E nós dois rimos disso. Você se incomoda se eu fumar mais um cigarro, Pedro? Eu tô um pouco agitada hoje. Quando tô assim, só me acalmo com cigarro ou com sexo. Tapou a boca de repente. Pediu desculpas disse que falava demais eu tentei dizer que não tinha problema, mas nem falar eu conseguia. Só balancei a cabeça.
Acendeu o cigarro e só depois de terminá-lo voltou a falar. Acho que ficou constrangida de verdade com a história do sexo. E você não fala nada? Eu só ri, meio sem jeito. Você é muito tímido, Pedro. Deixe essa timidez de lado, viu? Eu gosto que as pessoas se sintam à vontade quando estão perto de mim. Você sempre aceita caronas de estranhas? Você não é estranha. Eu já lhe vi outras vezes na missa. Então, além de tímido, você é observador. Já estou lhe desenhando na mente. Rimos novamente. É que eu fico lá do altar, virado pra porta. Dá pra ver cada pessoa que entra, a hora que chega. Tem umas pessoas que dá até pra saber onde vão sentar. Então você me notou quando eu entrei na igreja? Não dá pra não notar, eu disse. E ela riu de novo. Quer dizer... a gente nota todo mundo que entra, eu quis dizer. Claro, Pedro, claro. De toda forma, você não sabe meu nome ou onde eu moro. Eu poderia lhe sequestrar e, caso você escapasse, não teria nada a dizer sobre mim. Meu nome é Sylvia, a propósito. E eu moro aqui.
Me apontou a casa, enquanto o portão da garagem abria e eu pude ver a casa de dois andares, um jardim coberto de margaridas à direita da passagem do carro para a garagem e um girassol no outro lado. Além do girassol havia um caminho de pedras brancas e pretas sobre a grama muito verde. Havia ainda outras plantas, a maior parte delas sem flores, em toda a parte da frente da casa. Entramos e ela me levou direto à cozinha. Me pediu ajuda pra colocar um garrafão de água mineral no filtro. Essa é a pior parte de morar sozinha, sabia? Tem coisa que você não consegue fazer. E tem que depender da caridade cristã dos outros pra resolver. Sente aqui, e me mostrou uma cadeira, vou preparar um lanche pra agradecer. Não, dona Sylvia, não precisa. Eu estou indo pra casa, eu como lá. Dois erros em um pedido de licença só, meu caro: eu não me chamo dona Sylvia. Meu pai teve o bom senso de não me registrar com esse “dona”. Depois, não se recusa um lanche. Sente aí e eu finjo que você não cometeu nenhum dos dois, ok?
Preparou o lanche e, depois de comermos, fomos para a sala. Sentamos no sofá e ela pegou outro cigarro. Você estuda, Pedro? estudo, sim. E o que pretende fazer quando crescer? E riu novamente. Tamanho homenzarrão e eu perguntando o que ele quer ser quando crescer. Mais risadas. Mas você me entendeu, não? Eu quero ser padre. Padre? Que lindo. Não imaginei que ainda houvesse jovens que quisessem ser padres. Conhece a bíblia, padre Pedro? Um pouco, sim. Ainda tenho muito pra estudar. Eu conheço alguma coisa também. Meu pai era professor de literatura. Me fazia decorar os textos que mais gostava e, entre eles, estavam alguns textos bíblicos. De alguns deles eu realmente gostava. Posso lhe falar o meu preferido? Claro. Ela ficou muito próxima de mim e começou: “Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes”. Eu suava muito e engolia em seco diversas vezes enquanto ela falava. Cântico dos Cânticos, padre. O mais belo dos cânticos de Salomão. E você parece estar com muito calor. Vou pegar uma água pra você. Trouxe um copo, me perguntou se eu queria que ela fosse me levar em casa, o que recusei. Saí de lá quase correndo e voltei a encontrar Sylvia outras várias vezes.
Numa das vezes que nos encontramos, ela insinuou que eu deveria escrever nossa história algum dia.
Nota da editora: imagem escolhida e montada com único intuito de "sacanear" o escritor. =P
Por Fernando Palhano
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